Num post colocado algures aqui em baixo, comentando alguns textos meus sobre a União Europeia, o MM começou por me apodar de idealista europeu, por contraposição a ele, que se diz um realista, presume-se que também em matéria europeia. Tive sorte! Sabendo nós – eu e ele – que a visão idealista do mundo, fundadora do contrato social rousseauniano, é atributo duma postura tipicamente esquerdista, livrei-me de ser qualificado como um qualquer «perigoso esquerdista» infiltrado nesta nobre e honrada casa. Creio que o idealismo, no que me dirá respeito, se circunscreverá apenas às coisas da Europa. Nas outras, no restante que ao mundo dirá respeito, o meu pensamento será mais de cariz hobbesiano, típico de uma direita pura que continua a crer num Estado soberano – independentemente do que isso queira dizer nos dias de hoje – forte e omnipresente. Eu agradeço, penhoradamente, o epíteto com que fui galardoado mas, reflectindo sobre ambos os qualificativos, o idealista e o realista, parece-me que eles estão trocados – e passo a explicar.
Por uma questão de pleno exercício da cidadania, por dever de ofício mas também por prazer, tenho seguido de forma regular o funcionamento da União Europeia e das coisas ligadas à Europa. A esta Europa, a esta União Europeia – não a uma qualquer outra e ideal «Europa», não a uma qualquer outra e ideal «União Europeia». Creio, pois, que o idealista de serviço não poderá ser este modesto realista que, observando a via diária da União, sobre ela se tenta pronunciar não raro de forma crítica, muito mais vezes do que aquelas que gostaria de ter de o fazer. Pelo contrário, nesse ofício assumido de forma quase diária, são também muitas as vezes em que me defronto com vozes, críticas e ideias que não tomam por referência «esta» União efectivamente existente, mas se dizem identificadas com «outra» União, com uma União diferente, nunca totalmente explicada, nunca totalmente concretizada. Diria eu – com uma União «ideal». Esses, em meu modesto entender, são os verdadeiros idealistas europeus – os que se batem e propugnam por uma outra e ideal União Europeia, para quem aquela que existe não presta ou não serve. Nessas estradas da reflexão, sobre o que deveria ser a UE, em alguns momentos tenho visto o MM a circular. Eu tenho ido por outros caminhos, que às vezes mais parecem atalhos, que mais não são do que as estradas esburacadas da realidade, feitas de contradições, de divergências, de concordâncias aqui e discordâncias acolá. Mas a realidade é assim mesmo, controvertida, errante, quantas vezes errática.
Por outro lado, o meu dito «idealismo» – que pelas razões expostas me parece incorrectamente qualificado – funda-se e estriba-se no pensamento, na palavra mas também na obra duma plêiade de europeus ilustres que ao longo da história fizeram da causa europeia o combate das suas vidas. Ficando-me, apenas, pelo último século, para não ter de recuar mais além, encontro inspiração e modelo no legado de gente de excepção, cuja vida e obra tive oportunidade de estudar aprofundadamente, gente da estirpe de um Coudenhove-Kalergi, de um Retinger, de um Jean Monnet, de um Robert Schuman, de um Alcide de Gasperi, de um Adenauer, de um Helmut Kohl. E, entre nós, no pensamento de Adriano Moreira. Quase todos, por sinal, democratas-cristãos. Quase todos, por sinal, estadistas de excepção que não se limitaram a ser idealistas do projecto europeu, porque o construíram e edificaram, antes volveram a ideia de Europa unida no ideal das suas vidas – o que é bem diferente de serem idealistas europeus. É no que esta gente disse e, sobretudo, fez, que me inspiro, que me louvo e que busco respostas para muitas das dúvidas e dificuldades que o projecto europeu coloca a cada dia que passa e de uma forma crescente.
Já sei, de antemão, que não falta quem observe que os princípios que inspiraram esses pais fundadores já não se aplicam ao mundo de hoje – que é substancialmente diferente. Eis uma oportunidade de excelência para voltar a discordar. É que os princípios e os valores, para repetir a imagem de Adriano Moreira, são o eixo da roda – rodam com ela mas não saem do sítio nem mudam de lugar. E continuo a considerar que muitos dos princípios que inspiraram esses pais fundadores do projecto europeu que construíram continuam perfeitamente válidos e actuais. A paz continua a ser um bem perene; o relacionamento franco-alemão é talvez mais importante hoje, que a Alemanha está reunificada, do que o era nos anos cinquenta do século passado; fruto dos avanços da técnica e da ciência são cada vez mais os domínios onde o Estado soberano clássico tem de partilhar soberania e integrar-se com outros Estados para fazer face a desafios cada vez maiores; enfim – eu não consigo ver nos ensinamentos e na obra dos pais fundadores mandamentos desactualizados. Pelo contrário, creio-os bem actuais. Diria mesmo, trágica e dramaticamente actuais.
Por fim – na sua breve prosa, o MM encerra com uma questão que daria um bom «sound bite» mediático: será que a UE existe? Também aí eu prefiro ser muito realista e nada idealista – e, à falta de tempo para ir buscar a sua certidão de nascimento, onde ainda não está averbado o respectivo óbito, eu diria que a UE existe tanto que o MM se preocupa com ela. E, não raro, a critica e defende como é que, idealmente, a mesma deveria ser e/ou actuar. Questão diferente, muito diferente e com outros contornos, foi deixada também abaixo, num comentário do DPA que afirma que sim, que a UE existe – o que não existe é a Europa. O DPA sabe, de ciência certa, que pôs o dedo na ferida. Porque as grandes discussões, filosóficas e até ideológicas, têm por objecto, justamente, a «ideia de Europa». E determinar essa ideia de Europa, com os seus específicos contornos, o seu verdadeiro conteúdo, tem sido o trabalho de muito filósofo, politólogo e aparentado ao longo dos séculos. E tem sido um trabalho prévio à apresentação de muitos modelos e projectos sobre a forma que deve revestir a organização política da Europa. Essa era e será uma discussão apaixonante – impossível, contudo, de ser feita aqui. O que não retira pertinência à sua identificação.
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