Passados dois anos a sua ausência continua-nos a pesar!
Nunca é demais recordar o seu último artigo, de uma fabulosa clarividência:
AVEIRO, CAPITAL JUDICIÁRIA
1. O PROCESSO.
Quis o sortilégio jurídico-processual do Estado que Aveiro fosse inscrita nos
mapas oficiais também como capital judiciária transitória. Era a capital da Luz,
era a capital da Ria, era a capital do sal, era a capital dos ovos moles, era a
capital da oposição à ditadura, era a capital do debate e da polémica, agora tem
mais.
E fica-lhe bem, a Aveiro, terra de ancestralidade e profundas raízes
republicanas ter a oportunidade de dar um exemplo à República de combate à
corrupção, que fique nos anais da história política da cidade. Ainda mais nas
vésperas das comemorações do centenário da República que para o ano ocorrem.
Até agora o DIAP de Aveiro, o Tribunal do Baixo Vouga e o Tribunal de
Instrução Criminal de Aveiro estão de parabéns pela forma célere, eficaz,
desespectacularizada e o mais sóbria que é possível, tem conduzido o diálogo do
órgão de soberania Tribunais e demais autoridades judiciárias, se tem
relacionado com a opinião pública. Merece especial encómio a forma segura,
esclarecedora e consistente como o Juiz Presidente do Tribunal se tem dirigido à
opinião pública, bem distante do pornográfico atabalhoamento dos dias de brasa
da Casa Pia.
2. A CORRUPÇÃO.
Desde que se começou a perceber que não havia ninguém imune a uma perseguição
a alta velocidade pelas viaturas da Polícia Judiciária, mesmo daqueles que são
visitas de casa de toda a gente, muita coisa mudou. E a primeira coisa que mudou
foi a atitude política das pessoas que granjearam notoriedade pública. Aquela
espécie de imunidade mediática, que não jurídica, de que até então tinham
beneficiado, mesmo que tivessem o cartãozinho do partido, da seita, do clube
algarvio com validade 15 de Julho/15 de Agosto, terminara.
A partir do caso
Casa Pia, os políticos portugueses inventaram uma frase que repetem até à náusea
mas fazendo-o muito conscientemente pelo efeito de repetição que sabem vir a ter
no subconsciente eleitoral do país, e que tem servido às mil maravilhas não para
subverter resultados eleitorais, mas para esconder uma coisa pior: os actuais
políticos portugueses não querem combater a corrupção porque sabem onde ela
está, porque são cobardes e não denunciam, porque são cúmplices e também
beneficiam, porque têm um desprezível conceito do bem comum, porque não têm
valores, apenas interesses, porque nalguns casos têm medo e ter medo é humano
(há histórias de correctivos nocturnos e alguns acidentes rodoviários estranhos
nos últimos anos) e, neste caso, interesses é sinónimo de dinheiro, carteira,
notas, contas bancárias, offshore.
A frase é “À Política o que é da Política, à Justiça o que é da Justiça.”
Sempre que surje uma suspeita, uma dúvida, uma diligência na Justiça, os
microfones do decreto eleitoral, hoje chamados canais de televisão por cabo
todos diferentes e todos iguais, fazem a ronda das sedes dos partidos e
invariavelmente fazem a metódica e higiénica recolha da frasezinha fatal e
indispensável para sossegar a consciência do regime. Paulo Portas, que rapinou
60000 fotocópias do gabinete, que fez ruinosos negócios de Estado com
equipamento material como submarinos e helicópteros estragados, material com
contrapartidas ainda por apurar, cujo partido também foi financiado pelo novo
“Rei da Sucata” é useiro e vezeiro no uso desta lenga-lenga corrupteira para ver
se se esquecem dele e consegue passar pelos pingos da chuva.
Ora, o que é que
isto significa, tudo bem descascadinho? Significa que os jornalistas devem
largar o assunto e deixar a Justiça funcionar com os inúmeros casos em curso
plurianual de actividades, como submarinos, contratos, contrapartidas fantasmas
de lesa-património nacional, sobreiros, Freeport de Alcochete, bancos sortidos,
Oliveira e Costa, Dias Loureiro, João Rendeiro, doping no futebol de vez em
quando e para variar, tanta, tanta, coisa.
Já a oposição, se tiver juizinho, deve seguir adiante e discutir política,
como o índice da pobreza, os números do desemprego, a invasão dos comerciantes
chineses, os incêndios no Verão e as cheias do Inverno. E é melhor que seja
assim, porque há sempre dossiers novos prontos a sair para quem se portar mal. E
assim tem sido.
Sugere-se, desde já, que em Aveiro se deixem de escutas e de escutinhas, por
que com o fogo, os alvos e os senhores importantes que têm amigos chamados
Joaquins não se pode brincar. Os magistrados do DIAP de Aveiro deveriam, sim,
prosseguir as investigações e esquecer as malfadadas escutas, que apenas servem
à oposição e prejudicam a governação do país.
Deixem o Primeiro-Ministro de Portugal governar. À Política o que é da
Política, à Justiça o que é da Justiça.
Uma sumária leitura dos clássicos ensina-nos como todos viam o poder exercido
para o bem dos outros como o exemplo do Governo virtuoso e o poder exercido para
o bem próprio, como o exemplo do Governo pecaminoso. Interessava o carácter, não
o botão da junta de boi que arava a terra. Agora, não. Pode ser-se um crápula e
fazer um bom botão. E pode ser-se uma pessoa séria absolutamente desastrada com
as maravilhas da técnica.
Permitam os leitores uma pequena incursão de memória: lembram-se da acusação
feita ao Governo de José Sócrates tentar comprar a TVI antes do episódio Moura
Guedes? Lembram-se que foi através de uma fuga de informação que se soube da
operação? E também se lembram que Manuela Ferreira Leite, em Junho passado,
disse taxativamente que José Sócrates estava a mentir quando afirmou nada saber
sobre a negociata? E que não foi desmentida?
3. BATER NO FUNDO.
Esta semana trouxe-nos, enfim, o episódio final na triste sucessão de
equívocos, desconfianças, suspeições, incompreensões, ordens por explicar e por
cumprir, em que a Justiça desgraçadamente se transformou. Noronha do Nascimento,
presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e Fernando Pinto Monteiro,
procurador-geral da República, em acesa disputa, tu cá tu lá, nas ruas, à
entrada e saída de prédios, de escadas, de carros, de aeroportos, eu sei lá que
mais…, debateram-se em duelo institucional deprimente sobre a melhor explicação
a dar a propósito do destino final para as escutas das conversas telefónicas de
José Sócrates com pelo menos um amigo, onde, alegadamente se faziam combinações
sobre um “amigo Joaquim”, que alegadamente precisaria de umas coroas para um
negócio que Sócrates afirmara desconhecer.
Os indícios de corrupção alargada ao mais alto nível do Estado estão aí para
quem os quiser ver e escrutinar. Nos últimos trinta anos de Democracia, governos
de esquerda e de direita estiveram sob a mira criminal e debaixo do escrutínio
dos media. Depois dos sucessivos casos que saltaram para a ribalta pública, bem
como dos sinais de alarme escarrapachados nos relatórios de organizações
internacionais, o poder político continua impune e indiferente, apesar das
constantes palavras vãs e mansas.
A realidade é o que é, mas ninguém pode ficar indiferente à tentativa de
desvalorização da investigação criminal que continua a fazer, lentamente, um
caminho infame. Em vez de responsabilizar os sucessivos governos que têm o poder
de legislar e de exigir responsabilidades, aqui e ali, sobretudo quando os
escândalos chegam à opinião pública, surgem imediatamente os ataques aos
investigadores criminais e magistrados. Normalmente, e apesar de existirem
alguns fundamentos para esta avaliação, a verdade é que quem tão selectivamente
aponta o dedo a quem combate a corrupção na primeira linha não tem o mesmo
critério na exigência ao governo de leis claras e atribuição de meios adequados
para responder à sofisticação do crime de 'colarinho branco'. Com o
desenvolvimento da operação "Face Oculta", a actualidade revelou um novo e
surpreendente patamar de debate, que passa por reduzir o combate à corrupção a
uma mera questão de moralização do sistema, supostamente levada a cabo por
heróis imbuídos de um espírito messiânico.
Ora, o combate à corrupção começa justamente por ser um caso de política
antes de poder vir a ser um caso de polícia, porque se trata justamente de saber
se quem tem por obrigação escolher outros sabe escolhê-los ou se qualquer
valdevinos serve. Não é uma questão de moralidade e de coragem, é um caso
seriedade, de competência, de justiça social, de perseguir quem rouba o dinheiro
do bolso dos outros. Que não haja qualquer confusão: há uma diferença abissal
entre pugnar por mais justiça social, com mais solidariedade e menos corrupção,
e pactuar, quiçá promover a gritante promiscuidade e tráfico de influências que
estão na origem da corrupção.
4. AS REFORMAS.
Desde o caso Casa Pia o Portugal político assistiu a um fenómeno novo. Sempre
que elementos do PS são processualmente visados em processos de investigação
criminal as leis mudam. Não se percebe porquê, porque se trata muitas vezes de
alterações sem paternidade assumida, cheiram a soluções cirúrgicas para vir a
permitir mais tarde resolver problemas em processos concretos que já se sabem
que irão surgir. Traduzem-se em propostas de lei supersónicas, apresentadas,
votadas e aprovadas no Parlamento em poucos dias e que entram em vigor quase de
imediato, para blindar desde logo a ordem jurídica. Foi justamente o que sucedeu
com as duas últimas leis de alteração do Código de Processo Penal e do Código
Penal. Mas pronto, deixemos então à Justiça…
O PS, com o apoio do PSD, que votou a favor e com o apoio do CDS, que também
votou a favor, tornou-se no campeão da subversão política da ordem jurídica.
Legisla-se a quente, para safar a pele de alguém e não porque se trate de uma
solução-técnico-jurídica JUSTA.
5. O SEGREDO DE JUSTIÇA.
Não deve haver tema mais debatido em Portugal nas televisões, nos jornais,
nas rádios, nas revistas especializadas, nas colunas dos periódicos, do que o
segredo de justiça. Não deve haver norma processual penal mais violada em
Portugal nos últimos anos do que o que regula o segredo de justiça. A natureza
humana tem um irresistível impulso para a espreita da fechadura, subir muros de
segredos. Compreender o regime jurídico do segredo de justiça em processo penal
nos últimos trinta anos em Portugal deveria ser disciplina de natureza esotérica
obrigatória autónoma nos cursos de Direito. O problema agora, e nasce sempre um
problema quando se resolve outro, é saber o que fazer às escutas em que são
apanhados titulares de altos cargos públicos. Um diz que mandou destruir, mas
não foram destruídas. Outro diz que recebe certidões a pedaços. Tudo nas
pantalhas do prime-time, para tristeza de que aspira a viver num país com um
módico de decência e confiança nas instituições. Esta semana Portugal viveu num
deplorável estado de sítio judiciário. A proposta óbvia é: congelamento
legislativo até à consolidação de um quadro normativo claro, que todos percebam
e saibam aplicar.
6. O FUTURO.
Não é fácil resolver o problema de desconfiança em que a Justiça se deixou
colocar neste últimos anos. Proibir a legiferancia durante cinco anos para
permitir a consolidação da ordem jurídica? Mudar os protagonistas, todos
provenientes de corporações que se protegem umas aos outras para garantir a
velha vindima duriense antes do regresso aos processos a 15 de Setembro? Fixar
interpretação jurisprudencial das leis que elimine a estupefacção cidadã sobre
como dois casos iguais podem ter duas soluções diferentes na decisão
jurisprudencial, evoluindo, embora gradualmente para um sistema de precedente
judiciário? Não sabemos. Há decisores políticos escolhidos para decidir. Que o
façam e, sobretudo, que o expliquem bem para que não seja necessário
dicionário.
7. O SISTEMA PARTIDÁRIO.
Está aqui o nó górdio do problema. É aqui que se começa. Uns cupões de
gasolina por um favorzito na segurança social. Uma influencia no notário para
uma facilidade na conservatória. Um toque no primo para um recebimento nas
Finanças e por aí acima. A carreira interna vai-se fazendo. Descobrem-se
contratos, notas, malas, luvas, comissões, offshore, sudokus de datas de
despachos, de autorizações, de vistos, de datas, de ginásticas que podem render
milhões, tudo à sombra de crescente impunidade e, assim, de
irresponsabilidade.
Isto não se combate, sobretudo num país de amigos de café, de primos
afastados, de família chegada sentado numa secretária à espera de uma manchete
de um qualquer semanário que saia no dia seguinte, para recomeço da rambóia.
Resolve-se com iniciativa e sem medo. Se com um cefalópode gigante siciliano é
possível, com uma alforreca algarvia deverá bastar um mandado de busca e
apreensão, desde que evidentemente a vítima seja avisada na véspera para queimar
uns papéis na lareira.
O último desespero se tudo falhar: a campanha negra. A espionagem. A
conspiração. Sócrates também já tentou esta. Não resulta. Quando a credibilidade
se esfuma não há argumento que resista.
8. UM HOMEM DO AZAR.
Desde que Sócrates chegou ao poder que a Justiça tomou conta das suas
sucessivas trapalhadas, mostrando que a carreira política do Primeiro-Ministro
se construiu na base da confusão. A SOVENCO, os projectos da Cova da Beira,
assinados por Sócrates mas ainda não se sabe feitos por quem, uma licenciatura
fast-food, que mete fax’s ao Domingo, notas sobre trabalhos universitários
risíveis, confusões na explicação do curriculum oficial sucessivamente alterado
nos serviços parlamentares, esquecimentos de sócios ilustres em negócios com
Felgueiras e Vara, discrepâncias em valores de compras de casas, em prédios de
luxo em plena Lisboa, um ror de trapalhadas e mentirolas no processo mal
cheiroso do Freeport de Alcochete longe do seu termo, e ainda mais umas coisitas
Ventspils, que não tardarão a chegar por aí. Nada bate certo. Nem num simples
relatório de técnicos da OCDE sobre a educação em Portugal Sócrates foi capaz de
enfrentar a verdade numa tarde parlamentar, em que de uma vez só destruiu o
relatório, o sítio da internet do PS e as suas próprias convicções de verdade
sobre o assunto.
Rematando: agora, alegadamente, o Primeiro-Ministro é comentado no
estrangeiro por ter tentado, não se sabe se sim, se não, uma cunha a um amigo
administrador de um banco privado totalmente dominado pelo seu Partido para
safar um amigo que por sinal até tem valido bastante no sector da comunicação
social. Assim uma espécie de Berlusconni, em versão interior esquecido e
marginalizado. Não me surpreendeu a simpatia indisfarçável com que Sócrates
esmiuçou o inenarrável Primeiro-Ministro italiano. Bate tudo cero: uma ideia de
vida, de progresso, de carreira, de “subir na vida”. E isto, caros leitores, que
já não tem nada a ver com maiorias, taxas de imposto, PME’s, PEC, meio milhão de
desempregados, um Estado em pré-insolvência, tudo remete para segundo plano da
crise nacional mais profunda que Portugal vive desde a perda dos territórios
ultramarinos. Mas isso, lá está, não interessa nada.
9. O PRESIDENTE.
Portugal tem um Presidente da República eleito por sufrágio secreto, directo
e universal. Acho bem. Sou presidencialista e pela mudança de sistema. Prefiro
um sistema dual Parlamento-Presidente, do que a unicefalia Primeiro-Ministro e
os outros satélites. Mas o nosso Presidente não tem poder. Tem dois: preocupa-se
e fala e ultimamente quanto mais fala mais se enterra. Já Jorge Sampaio também
se preocupava metodicamente até que numa noite implodiu um Governo de maioria no
Parlamento e lavou oito anos de coisa nenhuma. Não sei, não adivinho, não
cenarizo. Apenas não acredito que venha alguma coisa dali. Sampaio ainda tem o
saneamento de Armando Vara no curriculum. Cavaco nem deve ter chegar a ter tempo
de mandar substituir a comandante do pelotão de formigas do Palácio.
10. E A CRISE ACABOU.
Mas podemos estar todos descansados. A crise, as preocupações de Cavaco
Silva, o pandemónio judiciário, tudo acabou. Mais uma vez graças aos
insuperáveis socialistas, que usam revelar uma eficácia estrondosa nestas
situações limite.
Reuniu um órgão de consulta do ministro da Justiça, criado há nove anos e que
não era convocado há cinco anos. Dos 22 participantes qualificados, destaque
para a presença do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha
Nascimento, e do Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro.
Ambos os conselheiros deixaram os jornalistas sem novidades sobre o caso do
momento - as consequências jurídicas das escutas a comunicações entre Vara e
Sócrates - recusando-se a prestar declarações. Os participantes que falaram à
comunicação social foram unânimes em realçar o clima de degelo. Alberto Martins,
uma espécie de ministro analgésico, igual a tantos que podiam recrutar nos
escritórios das avenidas novas, não escondia a sua satisfação pelo clima de
"diálogo auspicioso” do encontro. Martins, daqueles típicas figuras socialistas
que não adiantam nem atrasam. Anunciou que o Conselho Consultivo poderá
reunir-se de dois em dois meses, com quatro temas de fundo: eficácia e
celeridade da justiça; repressão e prevenção criminal; acesso à justiça e
confiança no sistema de justiça
O ministro da Justiça parece querer por cobro à situação de balcanização da
justiça, que tem sido bem patenteada pelo clima de crispação, actualmente num
pico devido aos efeitos colaterais do processo da Face Oculta e, sobretudo às
escutas de conversas entre o banqueiro Armando Vara e o primeiro-ministro, José
Sócrates.
Nesta conjuntura, Alberto Martins parece desejar inverter a situação e,
depois de no sábado passado, se ter reunido, em Coimbra, com os membros da
comissão que vai avaliar as mudanças à Reforma Penal de 2007 (aí vem outra
reforma para o que é preciso…), abriu a reunião do Conselho Consultivo da
Justiça, um órgão que existe há nove anos e estava paralisado há cinco anos.
Parecendo querer passar das palavras aos actos, Martins prepara-se para
suspender os prazos judiciais entre os dias 15 a 31 de Julho, para suavizar as
reservas que a alteração do regime das férias judiciais consumada pelo anterior
Governo e anunciada por José Sócrates no discurso de posse, quando se iniciava
uma legislatura com maioria absoluta do partido do Governo.
É, portanto, oficial: a crise acabou e este artigo de opinião fica obviamente
sem efeito.